A ilha em movimento: Preparativos para o Carnaval da Terceira

24-01-2024

Com a aproximação do Carnaval, começa o burburinho e agitação na Ilha Terceira que se transforma num palco de animação cheio de atores e músicos. Dormir não é uma prioridade. Quando acabam as festas de verão em outubro, começa-se a preparar o Carnaval. É hora de organizar os grupos, os ensaios, falar com os autores, com a Modelinas, as costureiras e preparar os palcos da ilha.

Texto de Rodrigo Dutra

Cristina Silva, responsável pelo Grupo de Amigos de São Brás, iniciou o mesmo em 2015 e, desde aí, nunca parou de subir aos palcos da ilha. As dificuldades de criar um grupo de Carnaval passa por variadas situações. "Todos os anos, temos falta de tocadores dos variados instrumentos. Depois um diz que vem, a seguir outro mais perto do tempo diz que já não quer..." Sobre a logística de preparação de ensaios, Cristina Silva afirma que "é bastante difícil, embora se consiga organizar com a ajuda de todos". Apesar de todos os entraves, Cristina diz que se tem conseguido fazer o pretendido.

Sobre a escolha do enredo, segundo Cristina, esta fica "à responsabilidade das personagens do assunto". Já as músicas e os tecidos ficam à responsabilidade da própria. Numa garagem, com bancos contra as paredes, há pautas de músicas presas em cordas da roupa e animação total. "Nos ensaios há muita comida, muita bebida e todas as sextas-feiras é dia de churrasco." É assim que o Grupo de Amigos de São Brás vive os preparativos do Carnaval. 

Churrasco como dita todas as sextas-feiras de ensaios
Churrasco como dita todas as sextas-feiras de ensaios

Este conjunto de amigos integra já três gerações e foi Pedro Silva, filho da responsável do grupo, que falou sobre os ensaios e descreveu a ansiedade que se vive até aos dias de Carnaval. "Os ensaios são muito bons. Os ensaios é que são o Carnaval. Aqueles quatro dias é só atuar para as pessoas, porque a diversão e o convívio é nos ensaios. Os ensaios são o melhor do Carnaval."

O impulsionador desta tradição

Mais de 1300 assuntos [enredos, teatros rimados] escritos. Hélio Costa com 68 anos de idade, para além de ser um dos grandes nomes do Carnaval, é também um dos escritores que os grupos procuram para escrever o assunto. Como é que Hélio Costa vive os preparativos do Carnaval? Num escritório, com um computador e teclado, e várias lembranças e ofertas dos grupos para quem escreve. É nestas quatro paredes que se encontra muitas horas antes dos quatro dias de festa.

Hélio Costa afirma que os grupos iniciam os pedidos por volta do fim das festas de verão (em outubro). "Demoro mais ou menos uma semana a fazer um assunto, isto com muitas horas de dia e de noite." Apenas consegue trabalhar com a pressão da entrega do enredo ao grupo. Hélio diz que não lhe traz qualquer inspiração escrever com antecedência: "no verão tentei escrever, mas não saía nada". O autor é questionado sobre o ambiente perfeito para escrever o enredo, afirmando que, em tempos, era o cigarrinho que nunca podia faltar, mas agora, e devido à situação de saúde, é apenas no seu escritório com silêncio e com a "tal pressão".

O escritor, em 2008, escreveu 56 assuntos todos rimados. Onde é que se vai buscar ideias para os escrever? Hélio assegura que "não é muito difícil porque cada assunto tem o seu tema, porque uma pequena coisa pode dar um enredo. Coisas que acontecem no dia a dia podem dar uma história para o Carnaval", garantindo que "nunca houve Carnaval nenhum em que algum grupo ficasse em casa por falta de enredo". Assim, Hélio Costa já inicia a escrita dos assuntos para o Carnaval 2024.

Hélio Costa na inauguração do “Museu de Carnaval – Hélio Costa” (foto retirada de Fernando Pavão)
Hélio Costa na inauguração do “Museu de Carnaval – Hélio Costa” (foto retirada de Fernando Pavão)

Um dos motores da economia

O Carnaval é um dos grandes motores da economia local, nos mais variados setores. Uma das lojas mais procuradas é a Modelinas, a principal loja de tecidos da ilha Terceira. Casa que trabalha há 40 anos com Carnaval, localizada no concelho da Praia da Vitória, quando se entra na Modelinas, perde-se o olhar no meio de tantas cores e tecidos, das linhas no chão de tanto trabalho, tesouras e fitas métricas de madeira em cada canto da loja...

Loja “Modelinas Tecidos”
Loja “Modelinas Tecidos”

Mariana Borges, uma das trabalhadoras, conta todo o trabalho dos preparativos desta festividade, afirmando que a loja inicia todo o processo com bastante antecedência. "Iniciamos com as escolhas de tecidos a partir da segunda semana de outubro, para termos mais tempo na procura de fornecedores e a nível de materiais." Mas a complexidade deste processo não fica por aqui, sendo que a Modelinas trabalha com a maioria dos grupos a gestão e organização têm de ser bem feitas para se conseguir diversificar os tecidos e cores, não existindo repetições. Mariana fala sobre a solução para este problema: "O que fizemos este ano foi imprimir um mapa da ilha Terceira e colocar as cores em cada freguesia [os bailinhos são criados nas freguesias], para depois no meio do trabalho sabermos que as Lajes, por exemplo, têm as cores X e Y".

A procura de tecidos passa por um pouco de tudo: lisos, rendas, bordados, cetins, mas Mariana garante que o tradicional está sempre na escolha do brilho e lantejoula. Os valores que rondam estes tecidos dependem da ideia de cada grupo, mas "se uma pessoa quiser ir bem vestida, com tudo aquilo que gosta a nível de brilhos e acessórios, se calhar, consegue ficar entre os 100 e os 150 euros". O pré-carnaval é uma das alturas em que mais se sente turbulência na Modelinas. Às vezes, não sabemos que horas são nem a que horas saímos." É assim que vivem desde outubro até ao dia de estreia, caracterizando-se como "pneus de socorro", pois se faltar alguma coisa de última hora estão ali para servir os grupos.

Mariana Borges na preparação de tecidos para os grupos
Mariana Borges na preparação de tecidos para os grupos

Agulhas, linhas e costuras

Escolha dos tecidos tratada, tem de se passar para a construção dos vestuários. Esmeralda Aguiar, costureira desde que se lembra, é uma das grandes ajudas na confeção dos figurinos. A falta de costureiras é notória na ilha e obriga a que cada costureira fique com mais do que um bailinho. Esmeralda este ano tem quatro bailinhos para servir.

Numa sala relativamente pequena, com duas máquinas de costura, uma mesa grande com tecidos a cobrir, uma cadeira confortável e uma cara de cansaço, é assim que está Esmeralda Aguiar nos preparativos desta tradição. Questionada sobre o modo como consegue chegar a tudo, a resposta foi simples e direta: "É gostar!" Garante que não tem horários até fevereiro, realçando que começa a trabalhar logo pela manhã, almoçando e jantado pelo meio, acabando só de madrugada. "Estou aqui até às duas, três, quatro da manhã", afirmando que se estiver a chegar aos dias e as coisas não estão a correr como ela quer, nem sequer à cama vai. Mesmo com estas dificuldades, Esmeralda sente vaidade e gozo de ver aquilo que fez em cima de um palco.  

Um dos Bailinhos confecionados por Esmeralda Aguiar    (foto cedida por Esmeralda Aguiar)
Um dos Bailinhos confecionados por Esmeralda Aguiar (foto cedida por Esmeralda Aguiar)

Os maiores palcos do mundo

Quando se chega aos dias de Carnaval, a sociedade tem de estar pronta para receber os grupos e as pessoas que por lá passam. É Roberto Linhares, um dos membros da direção da Sociedade de São Brás, que fala sobre a preparação da sociedade para o Carnaval.

A preparação conta com três fases distintas. "A primeira é convidar todos os grupos com uma garrafa de bebida para irem atuar à sua sociedade. A segunda é preparar as iguarias para aqueles dias, como o polvo, as codornizes, as morcelas e as bifanas. E a última é a decoração da sala de espetáculos", conta Roberto. Contudo, a primeira fase já se encontra a decorrer, e "de forma bastante divertida", diz Roberto. São nestas salas amplas, cheias de cadeiras, luzes e palcos que se vive o Carnaval terceirense. 

Entrega do convite ao Bailinho das Mulheres do Porto Judeu.    (foto retirada da página do Facebook do bailinho)
Entrega do convite ao Bailinho das Mulheres do Porto Judeu. (foto retirada da página do Facebook do bailinho)

Mas isto não fica por aqui. Para além destas três fases de que Roberto fala, existe a mais dispendiosa que é a preparação da mesa, como forma de agradecimento da passagem dos grupos. Roberto afirma que esta mesa abastada de comida pode rondar os 2000 euros. Porém, com a ajuda da freguesia é possível fazer tudo.

Carnaval da Terceira reconhecido como Património da UNESCO

Foi no passado ano, a 22 de outubro, no Museu do Traje, em Lisboa, que decorreu a cerimónia de entrega de prémio em que o Carnaval da Terceira foi distinguido como Património Cultural Imaterial da UNESCO. "Este é um momento de celebração dos Açores, da nossa identidade idiossincrática, das nossas vivências, festividades e do percurso de valorização do Carnaval da ilha Terceira" diz Sofia Ribeiro, Secretária Regional da Educação e dos Assuntos Culturais.

Para esta distinção ser atribuída é necessário ser tradicional, contemporânea e viva, inclusiva, representativa e fundado na comunidade. "Hoje festejamos os reais protagonistas, que asseguram a transmissão e a preservação das Danças e dos Bailinhos de Carnaval da Terceira", frisou a governante.